A desgastante rotina dos profissionais de UTI na luta contra a Covid-19
Por Redação Testo Notícias

Dura realidade: profissionais de saúde enfrentam uma verdadeira batalha dentro das UTIs.
“Você tem a missão de falar para a minha neta e para a minha filha que eu amo elas para sempre”. “Você cantaria para mim a minha música preferida?”. “Não me deixa morrer”. Nos já lotados quartos de hospitais que lutam contra a Covid-19, pedidos como esses são recorrentes e desafiam ainda mais os profissionais que atuam na linha de frente de combate à pandemia, principalmente em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs), onde a doença castiga impiedosamente os pacientes cujos organismos desenvolveram a forma mais grave da enfermidade.
Mesmo perante as adversidades impostas pela rotina totalmente modificada com a chegada do novo coronavírus (Sars-Cov-2), médicos, enfermeiros, fisioterapeutas e todos os integrantes da equipe multifuncional da área de terapia intensiva assumem ainda a tarefa de acalentar os fragilizados e solitários pacientes que estão enfrentando uma batalha sem contar com a retaguarda dos familiares.
A gerente de enfermagem do Hospital e Maternidade Oase, de Timbó, Daysi Wolff, contextualiza de que forma a equipe atua para suavizar a solidão e o medo experienciados pelos internados por conta da Covid-19. Algumas das ações incluem promover videochamadas com os familiares, conversas por telefone e aplicativos, comemorações de aniversário e muito mais, sempre com o objetivo de resguardar a saúde psicológica. “Fazemos isso independente se ele está lúcido. Mesmo que esteja dormindo, há mensagens de carinho espalhadas pelo quarto.”
Matheus Kurth/Testo Notícias /Luta diária: Daysi e Karen fazem de tudo para levar aconchego aos pacientes
Nessa luta, há finais felizes e outros avassaladores. A enfermeira assistencial da UTI do Oase, Karen de Miranda Rocha, diz jamais ter imaginado sentir na pele aquilo que outrora estudou nos livros de história: o enfrentamento de uma pandemia.
Com o rosto molhado pelas lágrimas que insistem em cair, conta sobre um dos momentos mais intensos já vividos durante a trajetória profissional. Ao acompanhar uma senhora prestes a ser entubada, ofereceu conforto ao entregar um terço e segurar forte em sua mão. Em resposta, recebeu a dolorosa consciência da aproximação do adeus: “Ela disse ‘você tem a missão de falar para a minha neta e para a minha filha que eu amo elas para sempre e que eu não vou voltar'”. Mesmo que seja difícil, fazer jus a pedidos como esse se tornaram rotina. “Para muitos pacientes, nós somos os últimos a fazer uma oração, a rezar por eles. Sempre estivemos do lado de pessoas que faleceram, mas agora foram mais de uma por dia e estamos fazendo isso há meses”, confessa emocionada.
A despeito do status de heróis e heroínas atribuídos a eles pela sociedade, os profissionais são humanos que apesar de toda dedicação, estudo científico e preparação, também cansam, sentem medo, choram e precisam de apoio. “Muitos tiveram que fazer escala estendida ou trabalhar em dois hospitais ao mesmo tempo, foi algo bastante desafiador”, diz a fisioterapeuta do Hospital Santo Antônio (HSA), Ellen Santana.Lorena Borba/HSA/Desafio: possibilidade da falta de insumos preocupou a enfermeira Amanda.
Para a especialista em infectologia do HSA, Dra. Fernanda Arns de Castro, o cansaço da rotina extenuante atinge a todos, tanto por conta da constante atmosfera de urgência, quanto pela gravidade dos pacientes tratados.
O choque de realidade que atingiu os profissionais faz a enfermeira da UTI do mesmo hospital, Amanda Cezar Fauth, comparar a experiência vivida no último ano com a de atuar em uma guerra, sobretudo no que tange a ameaça de falta de insumos e a quantidade de pacientes em estado grave.
Tal situação ficou evidenciada durante um sábado de plantão, amarga lembrança que ainda povoa os sonhos de Ellen. “Havia três pacientes em estado muito grave, todos precisando de intubação e, naquele momento, só tínhamos uma vaga de UTI. Esse dia ficará marcado para mim como um dos piores da minha carreira até hoje.”
Plantões como esse se repetem em hospitais Brasil afora e acumulam histórias de pedidos desesperados, rostos nunca mais vistos e pacientes que não voltarão para suas famílias. Nessa batalha, não há a certeza de qual arma realmente pode derrotar o inimigo. Diante de uma doença nova e imprevisível, pesquisadores correm contra o tempo para reunir informações científicas que possibilitem o desenvolvimento de medicamentos e vacinas, enquanto a linha de frente atua de todas as formas possíveis para evitar mortes ou sequelas permanentes. “Não tivemos muito tempo para nos adaptar, logo após a chegada da primeira onda fomos dançando conforme a música”, admite Ellen.
Com isso, a pressão por respostas recaiu sobre os ombros dos que trajavam jalecos brancos, ainda mais daqueles que têm como área de formação a infectologia, assim como a Dra. Fernanda. Segundo ela, o enorme desafio era composto pelo desenvolvimento de estratégias que pudessem levar ao controle da disseminação do vírus entre os pacientes, funcionários e suas famílias. Com isso, uma série de protocolos para o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) foi estabelecida.
A corrida desenfreada por esses equipamentos levou à ameaça de escassez e trouxe consigo o medo e a insegurança logo nas primeiras semanas da pandemia, algo ainda sentido pelos profissionais entrevistados. O médico coordenador da UTI do Hospital Oase, Dr. Ian Robert Rehfeldt, descreve o momento como um dos maiores desafios enfrentados pela gestão, que conseguiu contornar a situação a tempo de jamais deixar que a falta de EPIs colocasse a equipe em um risco ainda maior. “Essa barreira era necessária por se tratar de uma doença altamente contagiosa. Ainda assim, não é possível controlar 100% e tivemos muitos profissionais em assistência que adoeceram.”
Lorena Borba/HSA/Atendimento: fisioterapeuta Ellen compõe equipe multidisciplinar responsável pelo tratamento dos pacientes.
O momento mais obscuro
No momento mais delicado enfrentado até aqui, o sistema de saúde entrou em colapso geral. A ocupação dos leitos de UTI é de aproximadamente 100% em todas as regiões. No Vale do Itajaí, nove hospitais possuem leitos de UTI Covid, somando 123 vagas ativas, das quais 122 estão ocupadas.
As informações de ocupação de UTI são fornecidas pelo Painel Leitos de UTI SUS, divulgado pelo Governo de Santa Catarina. O indicador é virtualmente inferior à real ocupação, devido à rotatividade de pacientes e aos horários de atualização. Quando liberado, um leito consta temporariamente disponível mesmo que já esteja reservado a algum paciente.
artes infográficos: Testo Notícias/
A pandemia resultou em uma corrida para aumentar a capacidade das unidades de terapia intensiva, visto que esse era um problema mesmo antes da chegada do novo coronavírus. Como estratégia, o Governo do Estado determinou quais unidades de saúde seriam referência no atendimento aos pacientes atingidos pela pandemia. Diversos hospitais em todas as macrorregiões foram destacados para esse intuito, no entanto, o único que se tornou exclusivo para atendimento desses pacientes, tanto em leitos de enfermaria, quanto de UTI, foi o Hospital e Maternidade Oase, de Timbó.
A unidade de saúde teve sua capacidade de atendimento em terapia intensiva mais do que triplicada. Conforme explica o Dr. Rehfeldt, o Oase começou as atividades para o atendimento da pandemia com os 10 leitos de UTI que já existiam e, logo em seguida, dobrou esse número com a utilização do espaço de uma nova Unidade de Tratamento Intensivo que já estava em construção e foi adaptada para pacientes adultos. Com o crescente número de casos, mais 10 leitos foram alocados dentro do Centro Cirúrgico, que foi desativado, com a demanda encaminhada para outros hospitais. No entanto, mesmo com a capacidade triplicada, foi necessário ativar mais sete leitos, também implantados dentro das salas de cirurgia. “No total, temos 37 leitos de UTI ativos. O único setor do hospital que ainda realiza atendimento geral [para pacientes não-Covid] é o pronto-socorro. No mais, temos uma parceria com o Hospital de Rio dos Cedros, então muitas especialidades acabaram dirigindo seu atendimento para lá e também para outras unidades da região”, esclarece o coordenador.
Matheus Kurth/Testo Notícias /Coordenação: Dr. Rehfeldt fala sobre o desafio de gerir uma UTI em meio à pandemia.
Apesar de toda a reestruturação, no dia 26 de fevereiro de 2021, o avanço da pandemia se mostrou implacável. Foi nesse dia que, pela primeira vez, o Hospital Oase informou a ocupação de 100% de seus leitos de UTI SUS (37) e mais dois leitos particulares, com um total de 39 pacientes intubados. Além disso, no Pronto-Socorro Respiratório, o hospital possuía pacientes graves (intubados e em respiradores) e que precisavam com urgência da transferência para o tratamento intensivo. O colapso atingiu também os leitos clínicos, que estavam passando da margem de segurança. O quadro interferiu, inclusive, na rotina de fornecer informações às famílias dos pacientes internados através de ligações telefônicas, pois a equipe precisou se concentrar no atendimento médico aos enfermos.
De lá para cá, o quadro tem se mantido preocupante, com a ocupação de leitos sempre altíssima. No dia 03 de março, ela era novamente de 100%.
Um vírus imprevisível
O apelo dos profissionais de saúde e os relatos das batalhas dentro dos hospitais podem parecer demagogos para muitas pessoas, o motivo para tal é que o inimigo dessa batalha é um vírus com características que mascaram a real gravidade de sua existência. “O coronavírus tem uma característica que pode enganar as pessoas. Isso porque 80% dos que contraírem a doença terão formas leves, com alguns sintomas gripais ou, até mesmo, assintomáticos, e terão um tratamento domiciliar que resolverá. O grande problema é que estamos falando de 20% da população com sintomas mais graves e que, desse número, 15% precisarão de internação em enfermaria e outros 5% vão para a UTI. Nos casos de UTI, a complexidade é grande e, com isso, o risco de mortalidade se torna elevado”, contextualiza o Dr. Rehfeldt.
Em Pomerode, dos 3434 casos de Covid-19 registrados até a segunda-feira, dia 1º, 147 pessoas necessitaram de internação para tratar da doença, 106 pacientes ocuparam leitos de enfermaria, enquanto os outros 41 estiveram, ou estão nesse momento, em leitos de UTI.
Apesar de existir um perfil mais definido de pacientes que desenvolvem a forma grave da doença, no qual estão inclusos idosos e pessoas com comorbidades, a Covid-19 está fazendo vítimas de todos os gêneros e idade, incluindo bebês e jovens até então saudáveis.
Divulgação/Hospital Santa Catarina/Precaução: Dra. Fernanda fala sobre estratégias desenvolvidas para evitar a contaminação da Covid-19.
Essa falta de conscientização da população transformou o cotidiano dos hospitais em uma corrida desenfreada para evitar mortes. Motivo pelo qual as equipes de saúde fazem um apelo à população. “O que eu tenho a dizer às pessoas que estão em casa é que continuem se cuidando, porque essa doença existe. Nós temos muitos pacientes graves, e muitos não saem da UTI ou, quando conseguem, carregam sequelas graves. O tempo de recuperação é muito grande e pesaroso”, apela a enfermeira Amanda.
Com relação à vacinação contra a Covid-19, todos os profissionais entrevistados se mostraram muito esperançosos. No entanto, o ritmo de imunização se mostra lento.
Conforme balanço divulgado na segunda-feira, dia 1º de março, Santa Catarina aplicou um total de 238.766 doses (D1 + D2) da vacina contra o novo coronavírus na população dos grupos prioritários desde o início da vacinação. Deste total, 180.199 correspondem à Dose 1 (D1) e 58.567 à Dose 2 (D2
Heroísmo não, coragem sempre
“Nós não somos Deus, mas fazemos de tudo para que a pessoa volte para a sua família.” É assim que a coordenadora de enfermagem, Daysi, descreve a postura dos profissionais de saúde perante essa interminável batalha.
As derrotas são constantes, cada vida perdida é sentida profundamente. Lágrimas marcam os dias em que as forças falham e, ainda assim, com a pandemia em seu auge, dia após dia médicos, enfermeiros, fisioterapeutas, nutricionistas, técnicos em enfermagem, gestores e os demais colaboradores que sentem de perto essa angústia, absorvem o turbilhão de emoções, guardam dentro de si e voltam para lutar mais um dia. “Nós choramos todos os dias, somos tudo o que o paciente tem diariamente”, afirma Karen.
Os profissionais entrevistados pedem ainda mais amor, empatia e responsabilidade para evitar que mais famílias terminem 2021 incompletas, assim como vem ocorrendo até agora. “Nós estamos e vamos continuar aqui por vocês, mas precisamos da ajuda da população para manter as medidas tão faladas em 2020. É isso que precisamos para que esse ano seja mais tranquilo no decorrer dos próximos meses, porque agora a batalha continua intensamente”, apela Dra. Fernanda.
Hospital Oase/Divulgação /Apelo: desde o início da pandemia profissionais da saúde pedem que a população ajude na luta contra o vírus.
Respeitar as regras de distanciamento social, higienização e uso de máscara é a parte que cabe a todo cidadão nessa batalha. Quando elas não forem suficientes, haverá profissionais dispostos a fazer de tudo pela vida daqueles que chegam às suas mãos. “Cada um que a gente vibrou depois da alta fez parte da nossa história, como profissional e como pessoa. Levamos cada um no coração”, finaliza Daysi.
Entre plantões intermináveis, despedidas diárias, ameaça da doença e a corrida contra o tempo, os profissionais de saúde que integram a linha de frente da Covid-19 permanecem sendo e fazendo o melhor possível que a humanidade é capaz de oferecer. Com eles, muito além do sentimento de gratidão, temos o dever de agir com consciência e responsabilidade perante a pandemia. Por eles, precisamos nos transformar também no melhor que a humanidade é capaz de ser.
Imagens
Foto: Lorena Borba/HSA
Desafio: possibilidade da falta de insumos preocupou a enfermeira Amanda.Foto: Divulgação/Hospital Santa Catarina
Precaução: Dra. Fernanda fala sobre estratégias desenvolvidas para evitar a contaminação da Covid-19.Foto: artes infográficos: Testo Notícias Foto: Hospital Oase/Divulgação Foto: Lorena Borba/HSA
Atendimento: fisioterapeuta Ellen compõe equipe multidisciplinar responsável pelo tratamento dos pacientes.Foto: Hospital Oase/Divulgação
Apelo: desde o início da pandemia profissionais da saúde pedem que a população ajude na luta contra o vírus.Foto: Matheus Kurth/Testo Notícias
Luta diária: Daysi e Karen fazem de tudo para levar aconchego aos pacientesFoto: Matheus Kurth/Testo Notícias
Coordenação: Dr. Rehfeldt fala sobre o desafio de gerir uma UTI em meio à pandemia.Foto: Hospital Oase/Divulgação
Dura realidade: profissionais de saúde enfrentam uma verdadeira batalha dentro das UTIs.