O Testo Notícias inicia hoje uma série especial intitulada “Marcas da violência” que tem por objetivo abordar a violência contra as mulheres. Nesta e nas próximas duas edições, você acompanhará as histórias de três vítimas que conseguiram se desvencilhar dos seus antigos relacionamentos e que estão à procura, ou já reencontraram, a liberdade.
Se você está sofrendo qualquer tipo de violência, saiba que não está sozinha. É possível solicitar ajuda ligando para a Central de Atendimento à Mulher (180), indo até uma Delegacia de Proteção à Criança, Adolescente, Mulher e Idoso ou Delegacia de Polícia Civil mais próxima, acionando a Polícia Militar em caso de emergências ou contatando o Centro de Referência de Assistência Social (Cras) ou o Centro de Referência de Assistência Social (Creas) do seu município.
Alerta de gatilho: as reportagens contêm fortes relatos de violência contra mulheres.
Ciúmes. Humilhação. Xingamentos. Agressão. Perdão. O que essas palavras significam para você? Infelizmente, para milhões de mulheres brasileiras, vítimas de algum tipo de violência, elas trazem um doloroso passado ou um amargo presente à tona.
“Foi muito difícil. Perguntaram se eu estava ‘fora da casinha’, não acreditaram, mesmo que eu estivesse toda machucada. Eu mesma duvidei, parecia que estava em um sonho, querendo acordar, mas não conseguia. Fui julgada e tive minha vida transformada em assunto de conversas nos corredores.” É dessa forma que Maria*, de 50 anos, resume os momentos de terror que viveu ao lado do ex-companheiro.
Uma pessoa que aparentava boa índole, educada e atenciosa. É assim que descreve o homem a quem um dia chamou de amor. Divorciada de um casamento que lhe apresentou a violência doméstica, acreditava ter aprendido a reconhecer, nas pequenas ações, o prelúdio para grandes problemas.
Maria conhecia o segundo companheiro, havia amizade entre eles, assim como conhecidos em comum. No passo em que a intimidade aumentava, outros sentimentos e emoções tomaram conta da relação. Foi no começo do relacionamento que ele começou a agredi-la por meio de palavras.
Hoje, Maria entende que aquele era o momento de ter dado “o basta”. Mesmo assim, na época, o amor falou mais alto. “Sentei com ele para conversar, perguntei se estava precisando de algo, perguntei o motivo por estar agindo assim e se o problema era eu”, relembra. Como resposta, recebeu um pedido de perdão junto com um “não sei o que está acontecendo”.
No fundo, ela reconhecia o angustiante sinal do ciúme e da possessão vindo à superfície. “Ele não admite, mas era isso. Os psicólogos me falam que eu não deveria me julgar, mas deveria ter ficado mais alerta, atenta. Mesmo assim, nada justifica o que ele fez comigo, hoje eu poderia estar morta”, admite.

Nesta reportagem especial, o nome fictício “Maria” será utilizado para proteger a identidade da vítima.
A gota d’água
As agressões eram frequentes, quando não assumia a forma física, era psicológica. Nos momentos em que criava coragem para confrontar o agressor, lágrimas escorriam pelo rosto dele enquanto a boca pronunciava o recorrente pedido de desculpas.
Com terror na voz, lembra-se do dia em que foi surpreendida ao chegar em casa. Após ter os pertences lançados ao chão, foi atingida por diversos socos. “Quando vi, era sangue por tudo, foi bem constrangedor.” O limite entre a vida e a morte estava cada dia mais próximo e se tornou inegável no dia em que foi espancada por pegar carona ao voltar de uma cidade para a qual tinha viajado. Essa foi a gota d’água que fez o pavor transbordar.
Diante do ocorrido, Maria buscou seus direitos. Fez corpo de delito e tudo o que fosse necessário para abrir o processo judicial.
“As pessoas falam que nunca devemos dar as costas para alguém, mas aconteceu, eu tinha como imaginar?”, se questiona. Ela ponderou muito sobre registrar ou não a denúncia.
“Durante aquela semana, sangrava direto, fiquei toda deformada, todos do meu trabalho diziam que eu tinha que denunciar, mas fiquei entre a cruz e a espada. No entanto, nada justifica o que ele fez comigo”, repete.
Mãos estendidas
Quando Maria decidiu se desvencilhar do relacionamento, contou com o apoio dos colegas de trabalho e também do Centro Especializado de Assistência Social de Blumenau (Creas), cidade em que mora. “Tempos” depois, também recebeu ajuda da família. “Tenho uma fé e força dentro de mim e disse que continuaria e lutaria. Tudo o que eu decidisse, sabia que teria que arcar com as consequências, independente da situação”, salienta.
De acordo com a psicóloga do Creas de Blumenau, Sheila Fagundes Isleb, as mulheres podem chegar ao Centro sem nenhum encaminhamento, ou seja, como demanda espontânea. Na oportunidade, elas relatam a situação de violência e os profissionais iniciam o acompanhamento.
“Cada caso é verificado e se buscam estratégias para lidar com a situação, traçamos um plano de atendimento conforme cada situação e demanda.”
Em diversas cidades, há uma rede para casos de violência contra mulheres. A ideia é que diversos órgãos trabalhem juntos na causa. Em Pomerode, por exemplo, a Delegacia de Polícia Civil encaminha todos os boletins de ocorrência identificados como violência doméstica à Secretaria de Assistência Social.

“Todos encaminham para nós o Sinan, que é uma ficha de notificação de violência, tanto de situações em que mulheres foram vítimas de violência quanto também de crianças, adolescentes, idosos e outros públicos”, explica a assistente social e então coordenadora do Creas de Pomerode, Rosemere Belz Claudino.
A secretária de Assistência Social de Pomerode, Renata Klee, destaca que há diversos encaminhamentos feitos também pela rede das políticas públicas, como, por exemplo, a rede de saúde da cidade. “Porque, em algum momento, também é necessário que a mulher e vítima, ou mesmo o agressor, acesse o serviço da política de saúde até pelas questões que envolvem a situação.”
Assim como foi com Maria, há muitos casos de relacionamentos em que os socos, empurrões e tapas se tornaram presentes após muitas injúrias, ameaças e xingamentos.
“Muitas vezes, quando a mulher chega a esse ponto de estar no Creas, as coisas já acontecem há algum tempo, normalmente não é uma situação atual. É um ciclo que ela está vivenciando e que, por conta de se colocar naquele lugar de inferioridade em relação ao masculino, ela acaba tendo essa dificuldade de reconhecer que isso é uma violência, de saber que uma palavra ou brincadeira pode se tornar uma coisa corriqueira e que acaba sendo uma violência também”, esclarece Renata.
Em questão de números de violência, o delegado da Polícia Civil de Pomerode, Antonio Lucio Antunes Godoi, acredita que a cidade conta com uma forte rede de atendimento.
“Costumo dizer que não existe subnotificação nesses casos, o Conselho Tutelar é muito ativo, a Secretaria de Assistência Social também, por meio da Prefeitura de Pomerode. Qualquer denúncia de violência contra mulheres eles procuram, dão o primeiro atendimento e, se percebem que tem algo de errado, nos encaminham. A vizinhança também, liga para a Polícia Militar, é muito importante, eles vão ao local, fazem o procedimento e encaminham para nós.”
“Meus dias nunca mais foram iguais”
Depois de ter passado por dois relacionamentos em que foi violentada, Maria tomou para si alguns aprendizados. O mais importante deles é nunca mais deixar alguém a desrespeitar, seja dentro de um namoro, casamento ou mesmo amizade.
“Porque é ali que começa, são sinais que passam despercebidos, mas que não se justificam. Todos nós temos problemas, mas não é por isso que eu vou agredir ou xingar uma pessoa. Hoje em dia, não deixo mais nada”, declara.
Maria denunciou o agora ex-companheiro em junho de 2021. Quase um ano depois, em 13 de abril, foi o momento em que ela começou a se recuperar do ocorrido. “Eu estava agoniada, sentia uma angustia dentro de mim, mas aí consegui melhorar. Foi bem na Semana Santa, eu tive a prova, ali Deus me testou. A partir dali, fui evoluindo, mas não é fácil, não é para qualquer um.”
Dentre as coisas que a fizeram melhorar, está a terapia do amor. Ela explica que muitos relacionam isso ao objetivo de arrumar um namorado, porém entende com outro significado.
“Ela serve para você encontrar-se consigo, com o que e quem você busca e quem está ao seu redor para tratar diferente. Isso está me ajudando muito. Comecei faz cerca de cinco meses”, reflete.

O processo para se reconhecer novamente é lento e diário. Maria entende que muitas pessoas criticaram sua atitude justamente porque nunca vivenciaram na pele o que ela viveu. “E a dor que vai até na alma? Aí você começa a se julgar, querer se punir, mas aos poucos, vai mudando, você começa a ver o outro lado, começa a aparecer outras pessoas na tua vida.”
Cinco meses depois da denúncia, Maria continuava recebendo diversas ameaças pelo WhatsApp. Foi aí que surgiu a ideia de fazer uma postagem no seu perfil do Facebook contando sobre o que passou. A intenção era que servisse de alerta para todas as mulheres. Com a ajuda de uma amiga, postaram o texto, juntamente com fotos das agressões, no dia 20 de setembro.
O retorno foi melhor do que o esperado. Maria recebeu mensagens de diversas vítimas de violência.
“Nós conversamos e elas se sentiram fortalecidas também, foram denunciar e se sentiram livres. No começo, eu chorava quando eu falava sobre o assunto, mas hoje em dia não mais. Eu ia às missas e o padre me via toda marcada, ele mesmo falou que é um milagre que eu esteja viva. Eu também considero”, expõe.
Mesmo depois de ter começado a se reencontrar, Maria entende que ainda está em fase de processar tudo o que aconteceu. Superação é a palavra que define o que está vivendo.
“Eu estou agora construindo um novo caminho pra mim. A única coisa que me move é a fé, não posso perder a esperança e preciso continuar a viver. Cada dia é um novo dia e essa é uma prova que eu estou tentando passar e é a mais difícil da minha vida.”