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Especial Marcas da violência – Renascida das cinzas

A dor de superar a violência psicológica vivenciada durante um relacionamento

Em quanto tempo um hematoma sai da pele? Uma semana? Duas, talvez? Quem sabe um mês? Conforme os dias passam, o arroxeado começa a desvanecer e, com o tempo, você até esquece que um dia ele já esteve ali. Agora, quanto tempo demora para a lembrança de um xingamento sair de sua mente? Quantos dias são necessários para que as palavras “feia, gorda e velha” não atinjam mais seu psicológico?

Além da tão debatidas violências física e sexual, as mulheres também são alvo de violência psicológica, um tipo de agressão que costuma passar despercebido para a sociedade, mas é frequentemente vivido pelas vítimas. Isabela*, de 51 anos, é uma delas. “Eu vejo que um tapa ou um soco desincham, mas a palavra fica muito mais, porque tu dorme e vem tudo de novo”, pontou.

Gaúcha de nascimento, tornou-se catarinense de coração há 19 anos, quando foi morar em Blumenau depois da morte da mãe. A matriarca e três filhos já moravam na cidade. Isabela, como irmã mais velha, se tornou a responsável por eles após a difícil perda.

“Fiquei cinco anos sem ver minha mãe pessoalmente. Quando consegui vir, conversei com ela às 10h por telefone, embarquei em Porto Alegre às 19h. Nesse meio tempo, minha mãe morreu em um acidente de carro. Então, acabei ficando na cidade.”

Isabela trouxe consigo as duas filhas. Teve o terceiro filho com o companheiro que conheceu já em Blumenau, do qual se separou posteriormente. Anos mais tarde, conheceu o futuro marido em um site de relacionamentos.

Já no namoro, ele demonstrou algumas atitudes agressivas. Quando apresentava esse lado, dizia à Isabela que estava estressado pelo trabalho e que não era um bom dia. Pedia desculpas e dava à companheira presentes para convencê-la de que não se repetiria, como viagens e almoços em restaurantes.

Com o tempo, a situação piorou e foi nesse momento que começaram as agressões verbais. “Ele me chamava de feia, gorda, velha, dizia que não tinha me comportado bem, que eu sorria demais, que estava me assanhando. Eu colocava minha opinião, mas ele me convencia de que estava errada, conseguia inverter a situação”, relata.

Um dos momentos dos quais recorda com pesar ocorreu quando estavam pouco mais de um ano juntos. Enquanto faziam limpeza ao redor da piscina que ficava na casa dele, Isabela quebrou a torneira do jardim após o balde de água escapar de sua mão. “Ele gritou muito comigo. Disse que era por isso que não tinha nada na vida, que não cuidava de nada. Essa era a hora de eu ter caído na real”, lembra.

Quando estava se arrumando para voltar para casa, já que não havia gostado da reação dele, recebeu o pedido de desculpas. Ele disse estar estressado pelo trabalho. “Ali eu já fiquei com a pulga atrás da orelha. Quando cheguei, liguei para ele e pedi um tempo, porque precisava pensar no que aconteceu.”

O casal permaneceu separado por um mês, até que ele começou a cercá-la com flores, chocolates e atenção. “Foi lindo. Aí eu pensei que ele deveria estar cansado mesmo. Foram muitas coisas boas e ele soube armar a situação. Se tivesse a visão que possuo hoje, não teria continuado.”

Quando completaram três anos, Isabela entendeu que havia algo de errado com o companheiro. Infelizmente, por já estar dentro do ciclo da violência, não conseguiu se desvencilhar a tempo e começou a enfrentar a situação como podia. Depois de seis anos namorando, o pedido de casamento chegou.

Isabela tinha o sonho de casar e ter uma festa grande, mas admite que pagou um preço muito alto por isso, já no dia da celebração. “Me casei de vermelho, porque era o que eu sempre quis, ele olhou para mim e começou a me xingar, ficou a noite toda emburrado.”

*Nesta reportagem especial, o nome fictício “Isabela” será utilizado para proteger a identidade da vítima.

Pequenos sinais

Para Isabela, algumas situações poderiam ter servido de alerta para que não precisasse se submeter à experiência traumática. Ela dá o exemplo do mal relacionamento que o companheiro tinha com a família e das diversas vezes em que disse que a “ex” não prestava. Além disso, ligava frequentemente para a esposa para verificar onde estava e pedia provas de que não era mentira, além de controlar o dinheiro conquistado por ela.

“Pedíamos muita comida de fora e isso foi outra coisa que ele fez comigo. Agora, entendo que era porque, nas visão dele, eu tinha que engordar. Quando o conheci era mais magra. Esse foi o meio dele, então tomou a decisão de me tornar feia”, destaca.

O dia a dia também era difícil. As duas filhas de Isabela já não moravam mais com a mãe, mas o mais jovem sim. Com o filho, não podia sequer assistir a um filme que já ouvia críticas. Com relação às meninas, inventava histórias para não vê-las ou mesmo conviver com a família da companheira.

“Ele dizia que estava mal, que a perna estava doendo, aí quando passava o horário, que já não dava mais para ir, ele melhorava. Ele não queria estar com mais ninguém, éramos somente eu e ele.”

Com isso, os familiares de Isabela, sobretudo os irmãos, começaram a desconfiar da situação. “Ele tentava se controlar na frente das pessoas, mas quando bebia não conseguia, por isso não víamos ninguém. Eu e meus irmãos tivemos uma criação de muita união e eles começaram a me perguntar, longe dele, o que estava acontecendo”, relembra.

Com os chefes, o mesmo aconteceu. Ao perceberem que a funcionária aparentava estar sempre triste e chorando, lhe questionaram sobre o relacionamento que mantinha. “Ter o apoio de todos eles fez muita diferença.”

Todos esses sinais poderiam ter feito Isabela evitar a relação abusiva, se percebidos a tempo. Para a psicóloga do Centro Especializado de Assistência Social de Blumenau (Creas), Sheila Fagundes Isleb, tudo que causa um desconforto ou um sofrimento psicológico é um indício de que a relação possa caminhar para uma situação de abuso.

“A nossa cultura naturaliza o desconforto da mulher em uma relação, então é difícil observar os sinais. Eu diria que tudo aquilo que causa um sofrimento psicológico ou rebaixamento da autoestima precisa ser revisto. Se isso não acontecer e não tiver uma mudança, é um risco de que a situação avance e evolua para violências mais graves”, contextualiza.

Rompimento da violência

Era a última quinta-feira de fevereiro de 2022. Isabela ouviu do marido diversos xingamentos sem nenhum motivo ou explicação. O mesmo aconteceu no dia seguinte. No sábado de manhã, o companheiro saiu de casa e voltou alterado pela bebida. Informou à esposa sobre um jantar que tinha marcado com um casal de amigos para aquela noite.

Ela, então, sem pensar duas vezes, ligou para os convidados e cancelou o compromisso. Entendeu que esse não era o momento para confraternização, principalmente depois dos abusos psicológicos vivenciados nos últimos dois dias. “Mas ele ligou e remarcou”, salienta.

No jantar, o marido encenou para todos que tudo estava bem com a esposa. Quando a comida estava servida, tentou colocar um pedaço de carne na boca de Isabela. Ação, porém, não aceita por ela. “Eu falei ‘chega’, disse na frente do casal que não estávamos bem, que ele não precisava fingir. Quando viu que não cedi como de costume, a coisa ficou bem desagradável e o casal foi embora.”

Assim que saíram, Isabela foi empurrada contra a parede entre a geladeira e a pia. O filho dela, que na época estava com 17 anos, saiu do quarto para intervir, pedindo ao padrasto que parasse, já que estava desde quinta-feira ofendendo a mãe. “Ele disse que estava cansado dessa situação e que era para ele me respeitar, que se não estivesse bom era pra ir embora, até porque ele sempre falava do poder financeiro, que ganhava mais do que eu”, reflete.

Em resposta, o padrasto agrediu o enteado. “Eu virei uma leoa para defendê-lo. Como meu ex-companheiro estava embriagado, não conseguiu machucar tanto, mas foi para cima mesmo, a ideia dele era bater muito no meu filho.”

Isabela decidiu, então, chamar a polícia. Quando a guarnição chegou, o homem já tinha saído de casa. No domingo, retornou por volta das 13h. Entrou na residência, já que tinha a chave, foi até a cozinha, abriu a geladeira, pegou um copo de refrigerante e sentou na mesa. “Eu disse para ele que não poderia ficar, daí ele me perguntou o porquê e eu disse ‘por que? Olha o que você fez’”, respondeu.

O companheiro disse não saber o motivo de terem acionado a polícia e que nunca os machucaria. Ainda culpou a companheira pela situação, pois, se tivesse ficado “quieta”, não teria perdido a paciência. “Não ia bater no teu filho e te arruma que nós vamos sair para almoçar”, completou ele. Isabela disse um “não” enfático e chamou as filhas para ajudar. Ele chorou e, quando entendeu que não tinha volta, saiu de forma agressiva.

Depois de duas semanas, Isabela recebeu uma ligação do ex-companheiro a partir de um chip desconhecido, já que o número dele estava bloqueado. No telefone, ele disse que tinha uma proposta. “Você mora em um apartamento, eu moro no outro e a gente fica junto, porque o que não dá certo é o teu filho. Assim, morando em casas separadas, vai ser melhor, porque sabes que podemos viajar, fazer as nossas coisas”, pontuou.

Como resposta, ele recebeu: “qual parte de que eu não quero mais que você não entendeu?”. Novamente, ele tentou convencê-la de que tinha uma vida confortável e que tinha errado por não ter ficado quieta naquele dia. “Quando repeti que não queria mais, ele disse que ‘agora’ eu veria o lado ruim dele”, lembra.

Depois de mais de seis meses do ocorrido, Isabela ainda carrega o peso de muitos xingamentos, áudios e ameaças, sempre colocando a parte financeira em foco. O resultado não poderia ser diferente: um psicológico extremamente abalado. “Eu me olhava no espelho e acreditava em tudo o que ele dizia que era: gorda, feia, velha, que minha barriga estava feia, que meu peito não era bonito.”

Isabela é negra e foi diversas vezes humilhada em relação black power que tinha. O cabelo era chamado de ninho de araçá e de rato, além de ser obrigada a prender os cachos quando saia de casa. “Um dia, mandei cortar o cabelo, passar a máquina. Sempre tive uma autoestima muito boa, mas esse homem destruiu. Hoje, me olho no espelho e me gosto de novo”, declara.

Apoio de todos os lados

Após ordenar que o marido saísse de casa, foi até a Delegacia de Polícia de Proteção à Mulher, à Criança e ao Adolescente (DPCAMI) para solicitar ajuda. Não demorou muito para começar a ser atendida pelo Creas. Agora, ela compreende a importância de ter tido o auxílio de profissionais. “Ter o apoio dos teus familiares é importante, mas ter um profissional te ajudando é necessário demais”, expõe.

Além disso, também entende que ir à delegacia fez a diferença. Mesmo recebendo o atendimento de homens, eles pararam para lhe escutar. “Foi com o coração, não foi julgando. Eles acreditaram em mim, me deixaram segura que iam fazer algo, eu não fiquei desamparada.”

O delegado da Polícia Civil de Pomerode, Antonio Lucio Antunes Godoi, destaca que é preciso coragem para que as mulheres denunciem o crime. “O mais importante é a confiança, a mulher tem que acreditar nos serviços tanto da Polícia Militar quanto da Civil. Se elas não confiarem em nós, não poderemos fazer nossa parte, precisamos de um voto de confiança da vítima e da sociedade para que possamos dar a resposta”, explica.

Após o primeiro atendimento, Isabela recebeu a proposta para, junto com o filho, saírem do apartamento em que moravam e irem para um abrigo. No entanto, como contou com o apoio da família não necessitou. Pediu medida protetiva e continuou na residência até se mudar para outro local. “Decidi que queria sair daquele ambiente e começar do zero. É muito legal você saber que pode e consegue fazer isso”, reflete.

Sobre a saída ou não de casa, a assistente social e então coordenadora do Creas de Pomerode, Rosemere Belz Claudino, evidencia que a primeira opção é afastar o agressor. Quando não há a possibilidade, há a necessidade de pensar em outros locais para acolher a vítima.

A prioridade é de que ela fique com a família ou com uma rede de amigos que lhes darão esse suporte. “Essa seria a nossa primeira alternativa, porque entendemos que é a mais adequada por ter o suporte emocional, de serem pessoas próximas para acolher. Em casos em que não há essa opção, fazemos contato com o abrigo para vítimas de violência.”

Livre como um pássaro

Depois de conseguir sair do ciclo abusivo em que vivia, Isabela declara estar se sentindo viva e liberta. “Quando você abre a gaiola de um passarinho que está preso, ele sai voando. Eu senti isso quando o deixei, a sensação é muito boa, eu estou sem horizontes”, evidencia.

Hoje, ela faz o que quer. Às vezes, chega em casa por volta de meia-noite, se arruma, chama um aplicativo de transporte e sai para dançar. Um dia, abriu uma garrafa de vinho e sentou na sacada. Para Isabela, isso não tem preço. “Consigo ir à casa das minhas filhas e receber elas na minha. Faço atividades com o meu filho que antes não conseguíamos. Posso comprar a bebida e a comida que quero, vestir o que desejo, demorar no salão… Estou me sentindo livre e viva.”

Olhando para trás, uma das coisas das quais se arrepende é pensar no preço que pagou pelo o que viveu. “Eu deixei meu filho nesses seis anos dentro uma coisa tão ruim. Ele é um menino muito bom, mas deixou de viver tanta coisa boa comigo. Nós não podíamos comer um brigadeiro de colher, porque ele ficava bravo. Comprávamos até lanche escondido”, descreve.

Para as mulheres que estão passando pela mesma situação, ela indica um exercício para a autoestima.

“Entre no banheiro, tranque a porta e vá até a frente do espelho. Diga para você mesma que você pode e consegue. Tudo o que o agressor fala pra ti é mentira. Não somos feias, toda mulher tem a sua beleza. Eles fazem com que acreditemos que estamos acabadas, mas não estamos, estamos vivas. Se toque, fale contigo mesma, não deixa esse monstro entrar na sua cabeça. Você precisa aprender a se amar primeiro para, depois, amar o próximo, mas tu tens que te libertar. Você dando o primeiro passo, vai te perguntar por que não saiu antes. Se libertem, mas conversem com vocês mesmas. Eu demorei, mas consegui, e você também pode, todas podemos.”

Proibido reproduzir esse conteúdo sem a devida citação da fonte jornalística.

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