O lápis corre solto pelo papel apoiado sobre a mesa. Os olhos do garoto, cheios de brilho, contrastam com a agonia do pai que observa cada movimento em transe. Alheio a isso, como se a quimioterapia não estivesse entrando pelas veias, o menino dá cores ao carro que, mais tarde, provavelmente correrá veloz pela sua imaginação. “Que carro bonito”, diz um desconhecido. Com um largo sorriso no rosto, ele responde com a agilidade de pensamento característica da idade: “é um Porsche!”
A cena é corriqueira nos corredores, salas e quartos da ala de Oncologia Pediátrica do Hospital Santo Antônio (HSA), referência para tratamento de câncer infantojuvenil desde a região do Alto Vale até a Foz do Itajaí. O próximo encontro é com uma tik toker famosa entre os funcionários da instituição e cheia de vida. Com apenas sete anos e munida do seu crachá especial, identificado com a função de “alegrar a pediatria”, a doce menina apresenta os ambientes do hospital, tão familiares a quem desde muito cedo precisou se acostumar com a batalha contra um inimigo que assusta até os adultos: o câncer.
“Elas fazem a quimioterapia brincando, são mais alegres e otimistas que os adultos, assim como mostram as taxas de cura do câncer infantil, a resposta da criança é melhor na maioria dos tumores” – Dra. Marcela
A força visível nesses pequenos guerreiros está presente em grande parte daqueles que travam a mesma luta. Fato comprovado pela experiência dos profissionais que, diariamente, se unem aos pacientes e familiares na busca pela cura. A coordenadora da oncologia pediátrica do HSA, Dra. Marcela de Morais Barros e Sousa, descreve o momento da picada da agulha como o mais temido entre as crianças. Mesmo assim, o choro logo se transforma em otimismo. “Elas fazem a quimioterapia brincando, são mais alegres e otimistas que os adultos, assim como mostram as taxas de cura do câncer infantil, a resposta da criança é melhor na maioria dos tumores.”
Além de positividade e confiança, demonstram ainda uma incrível capacidade de amadurecimento. Esse foi o caso de Yasmin Pereira Gonçalves, paciente diagnosticada com osteossarcoma. Para ela, amputar o braço aos 14 anos de idade não foi uma decisão fácil, mas nascida de uma certeza: a de querer viver. Diante da dura realidade, a primeira reação foi de resistência, mas, com o tempo, entendeu ser essa a sua melhor chance. “Eu falava que não tiraria, mas pensei bem e hoje vejo que foi para o melhor. Graças a Deus, não é difícil de viver só com um braço”, expressa Yasmin com uma impressionante maturidade.

Em seguida, um novo obstáculo surgiu para a adolescente. No retorno às aulas, após a cirurgia, precisou lidar com a atitude pouco respeitosa de alguns colegas. “Debocharam que tirei o braço, mas não me importo, pois sei que foi a melhor decisão que poderia ter tomado.”
Yasmin contextualiza que os primeiros sinais da doença surgiram em 2019. Atleta de voleibol, sentiu dores no braço e desconfiou que tivesse se machucado. Ao fazer um exame de radiologia no hospital, o inesperado tomou conta de sua vida. Com o diagnóstico comprovado, começou a tortuosa caminhada.
Primeiro, vieram as sessões de quimioterapia. Em março de 2020, ocorreu a retirada do tumor através de uma cirurgia. O tratamento seguiu até outubro do mesmo ano. Como protocolo, os exames de acompanhamento continuaram e, em julho de 2021, uma nova onda de incerteza inundou os pensamentos e corações de todos que convivem com ela.
“Debocharam que tirei o braço, mas não me importo, pois sei que foi a melhor decisão que poderia ter tomado” – Yasmin
O resultado da biópsia trouxe consigo a necessidade da amputação. Para a mãe, Lisandra Lopes Pereira, segue vívida a lembrança do quão difícil e pesaroso foi aceitar que a menina de coração alegre e gentil teria que passar por isso, porém, a coragem para encarar o momento veio de uma lição ensinada pela própria filha. “Foram dias tristes, mas ela sempre se manteve positiva e decidiu que amputaria para poder viver.” Atualmente, Yasmin está superando o câncer, continua com quimioterapia e precisará realizar radioterapia em um futuro breve.
A jovem encara tudo com coragem e determinação. “Várias coisas me ensinaram a ser forte e a nunca desistir diante dos obstáculos que a vida impõe”, completa.
Atitudes e esforços que fazem a diferença
Ajudar crianças e adolescentes a manterem essa postura e tirar o foco do sofrimento pelo qual estão passando é um dos papeis da psicóloga hospitalar com atuação em oncologia pediátrica do HSA, Eloizy Paola Barbosa. Para isso, famílias e pacientes recebem o acompanhamento especializado desde o pré-diagnóstico, passando por todo o processo de investigação, o momento de revelar o diagnóstico e o pós-tratamento.

Ao contrário do que muitos pensam, deixar a criança sem uma explicação clara pode causar muito mais prejuízos do que benefícios. Eloizy considera vital esclarecer todas as dúvidas e conversar abertamente sobre a doença e o tratamento. “Isso lhes dá a oportunidade de questionar. Muitas vezes, fazem até mais perguntas do que os pais, a primeira delas costuma ser em relação ao cabelo, porque, dependendo da idade, relacionam o câncer com o fato de ficarem carecas”, contextualiza.
Durante a terapia médica, tudo leva em conta o aspecto lúdico. Desde o ambiente pensado para fazer com que os pequenos se sintam à vontade, com jogos, brincadeiras, filmes e desenhos para assistir, até o modo com que os profissionais se relacionam com os pacientes, com amizade, companheirismo e carinho. Desde os mimos singelos até os atos mais vultuosos, somam-se em ações promovidas pela equipe multidisciplinar do HSA para suavizar o peso da batalha.
Atitudes essas que ficam marcadas na memória de quem teve um pequeno (grande) desejo realizado. Sair para passear, encontrar alguém que não vê há anos, deitar na sua própria cama ou colecionar novas aventuras. Qual seria o seu pedido após passar tantos dias internado?
Para Manuella Sophia Glau, a Manu, que passou por um tratamento contra leucemia com apenas quatro anos de idade, o enjoo causado pela quimioterapia, atrelado aos longos períodos dentro do hospital, resultou em uma falta de apetite que, em determinado momento, tinha apenas uma solução: comer um delicioso pastel frito.
Como a menina não podia ingerir alimentos comprados ou feitos fora da unidade de saúde, partiu da psicóloga da época a iniciativa de levar o pedido especial às cozinheiras da instituição. “Elas fizeram de tudo para entregar o pastel para ela”, lembra a mãe, Tatiana Glau. Com um sorriso no rosto, Manu adiciona ainda um item à lista de pratos favoritos na época de tratamento: “Mas tinha um frango, meu deus, aquele frango… Eu gostava muito, era tipo um frango empanado.”

Gestos como os da psicóloga, dos médicos, das cozinheiras e de toda a equipe multidisciplinar juntam-se a uma corrente que vai além das paredes do hospital e chegam aos corações daqueles que, da maneira que podem, ajudam a suavizar a dor sentida pelo outro. Nadir Neumann guarda na memória cada sorriso possibilitado à filha Bruna Fernanda Neumann Klein, que descobriu um câncer aos 11 anos. Tudo começou em um passeio de fim de semana, em que, após uma longa caminhada, Bruna sentiu fortes dores no joelho. Entre muitas idas e vindas, medicação, exames e consultas, chegou o diagnóstico: osteossarcoma. O combate à doença foi longo, mas, durante todo o percurso, a menina contou com a ajuda de verdadeiros anjos.
Essa é uma longa lista. Começa com o carinho e a dedicação que recebeu do padrasto, Volnei José Cardoso, passa pelo acolhimento dos colegas da nova escola, EBM Olavo Bilac, na qual ingressou pouco depois de descobrir o câncer, chega à solidariedade da comunidade pomerodense e retorna ao hospital, ambiente que foi seu segundo lar durante os dois anos de tratamento. De todo o apoio recebido, Nadir recorda especialmente do receio da filha em mudar de colégio. “A Bruna dizia que ninguém gostaria de fazer amizade com uma menina careca que andava de muletas. Mas, já no primeiro dia, se sentiu tão amada, protegida e querida, que todo o medo desapareceu… Ela amava essa escola de coração”, conta.
Todas essas memórias emocionam de forma profunda. Bruna passou por sessões de quimioterapia e amputou a perna. No entanto, o osteossarcoma se alojou nos pulmões e os tratamentos não conseguiram reverter o quadro, fazendo com que ela se tornasse uma das vítimas fatais dessa temível doença. Ela partiu pouco antes de completar 14 anos e deixou para trás muito amor para todos que tiveram seus corações tocados pela coragem e pela vontade de viver que demonstrava dia após dia.
Risco estimado de novos casos de câncer infantojuvenil para cada ano do triênio 2020-2022:

A força que se espalha
Falar sobre todo o processo é a forma que Nadir encontrou para preservar as lições e alegrias vividas ao lado da filha, além de ajudar outras pessoas que passam pelo mesmo desafio. Apesar de ter sido o momento mais doloroso de sua vida, revelou a capacidade de se doar mais pelos semelhantes. “Aprendi que posso contribuir com a minha cidade, com os moradores e fazer a diferença de alguma maneira.”
Para dar continuidade ao legado da filha, se tornou voluntária da Casa de Apoio, serviço social localizado na cidade de Blumenau que atende crianças e adolescentes com síndromes raras. Além disso, procura ajudar outras causas e instituições. “Não desejo essa experiência a ninguém, mas ela me ensinou a ter um coração melhor.”

A psicóloga hospitalar Eloizy destaca que oportunizar o encontro entre pais de crianças que estão em diferentes fases de tratamento para trocar informações, dividir as angústias, compartilhar as experiências e comemorar as conquistas é extremamente positivo. Uma das ferramentas que auxiliam nesse diálogo é um grupo criado por meio do aplicativo WhatsApp, com isso, “uma vai dando força para outra”.
Quem também experimentou o estímulo positivo proporcionado por esse apoio foi Tatiana, mãe da Manu. Ela confidencia ter se aproximado muito de uma mãe que mora em Timbó, cujo filho enfrentou o mesmo tipo de câncer. “Ela me ajudou muito, porque você entra em um mundo novo, do qual não conhece nada, e fica completamente perdida.”
A amiga a quem Tatiana agradece precisou enfrentar a perda do filho e, assim como Nadir, ressignificou o momento de dor para transformá-lo em ajuda a outras pessoas. “Temos mães que perderam filhos e viraram nossas super voluntárias”, evidencia a coordenadora da Oncologia Pediátrica do HSA, Dra. Marcela de Morais Barros e Sousa.
Números que trazem esperança
Quando o assunto é câncer infantojuvenil, as perdas são enormes, a batalha difícil, mas, felizmente, a vitória chega para a maioria. De acordo com os dados mais recentes divulgados pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca), cerca de 80% das crianças e adolescentes acometidos pela doença podem ser curados se diagnosticados precocemente e tratados em centros especializados. A maioria deles terá boa qualidade de vida após o tratamento adequado.
Felizmente, a Manu, menina espoleta, esperta e cheia de atitude, foi uma das pacientes que superou a leucemia e segue agora a vida normal de uma criança que brinca, estuda e conta com a saúde a seu favor para crescer e decidir quais oportunidades deseja para o futuro.
No entanto, um dia, tudo isso pareceu incrivelmente distante. Foi uma palidez incomum que acendeu o sinal de alerta para a família. Mesmo sendo um período de fim de ano, no dia 30 de dezembro de 2016, os pais não perderam tempo e a levaram ao pronto-socorro. Como se o destino estivesse atuando em favor da menina, a plantonista era especialista em oncologia e logo desconfiou do quadro.
Exames se seguiram e veio a confirmação da leucemia. Começaram as sessões de quimioterapia, as longas internações e tudo virou de cabeça para baixo. Manu tinha apenas quatro anos e, mesmo assim, contagiou a todos com sua alegria e surpreendeu pela força. “Ela podia fazer ‘quimio’ hoje, chegava em casa, pulava e corria como se nada tivesse acontecido. Até os médicos estranharam, porque muitas crianças ficam debilitadas, mas ela não, era ao contrário, falávamos que quanto mais soro davam, mais elétrica ficava”, brinca a mãe.

Manu passou por quatro ciclos de tratamento, perdeu o cabelo, deixou de ir para escola, precisou evitar passeios e enfrentou uma bactéria que a deixou com 41º de febre, mas, ainda assim, jamais perdeu o sorriso ou a empatia que a levaram a conquistar toda equipe multidisciplinar e a comunidade pomerodense, que acompanhou a batalha e torceu muito pela vitória. Mesmo tendo apenas nove anos de idade atualmente, ela lembra do dia em que se despediu do hospital.
Para marcar momentos como esse experienciado por ela, um ritual passou a fazer parte da rotina do HSA. Se a maior alegria para os profissionais que atuam diariamente com a oncologia pediátrica é ver os pacientes curados, o dia em que a mãozinha deles alcança o sino, cujo badalo se tornou um símbolo que marca a vitória sobre o câncer, é um dos momentos mais emocionantes de toda caminhada.
Sinais e sintomas
Dra. Marcela evidencia um fator muito importante quando se fala em câncer infantojuvenil: não existe prevenção, mas o diagnóstico precoce faz toda a diferença. Por isso, é necessário que pais e responsáveis prestem atenção a qualquer sinal. “Cada pai e mãe conhece seu filho.”
O primeiro passo a ser dado é manter as consultas de rotina no pediatra em dia, de acordo com o tempo indicado. Segundo ela, muitas vezes, é nessa oportunidade que o profissional já pode palpar um tumor, perceber que o crescimento da criança não está adequado ou algum sintoma que possa indicar câncer. “Como a doença pode surgir no intervalo entre uma consulta e outra, sempre falamos que são as mães que mais conhecem seus filhos. Muitas vezes, as crianças vêm aqui no pronto-socorro ou no consultório e a mãe fala que o filho está esquisito, que ele não era assim, sempre levamos esse relato em consideração e pedimos justamente isso, que fiquem atentos aos seus filhos.”

Uma das orientações é observar as crianças durante o banho para notar possíveis mudanças no corpo, como a presença de inchaço e nódulos. Para os adolescentes, que já podem perceber essas alterações por si mesmos, vale a mesma indicação.
O tumor mais comum em crianças e adolescentes é a leucemia. Com relação a ela, os pais precisam se atentar aos sinais mais comuns: palidez, fadiga, anemia (uma consequência da leucemia e nunca ao contrário), dores nas pernas, dores abdominais, aumento do volume abdominal e sangramentos. Ela pode causar também uma febre sem motivo e íngua no pescoço. Como esses últimos são comuns em várias doenças infantis, os pais devem prestar atenção à duração. “Se permanecer por mais de cinco dias ou o quadro está grave, procure atendimento médico.”
Dos tumores que afetam o sistema nervoso central, os sintomas são dor de cabeça e enjoo, principalmente matinal, convulsões, perda de força e alteração no lábio. “Os mais importantes, que são os mais discretos, são a dor de cabeça e enjoo diário e matinal. Se forem persistentes, é preciso investigar logo.”
Ainda de acordo com ela, um sintoma comum tanto na leucemia (já citada) quanto nos tumores ósseos é a dor nas pernas. Para evitar que seja confundido com a “dor de crescimento” a dica é, mais uma vez, avaliar a duração e as características. “Para a dor de crescimento, um remédio ou massagem fazem toda a diferença, a dor passa e a criança brinca no dia seguinte. Quando se trata de câncer, isso não acontece, a dor permanece no decorrer dos dias”, explica.
Tipos de câncer infantojuvenil (0-19 anos) mais frequentes:

Em todos os quadros, a principal e mais valiosa orientação é a de procurar ajuda médica especializada o quanto antes. “O nosso paciente chega tarde e com o tumor mais avançado. Nós aqui temos abertas vagas para infinitas crianças, ou seja, não é para nenhuma criança ficar mais que sete dias esperando na sua cidade uma consulta conosco e, para além disso, os casos graves têm que vir no mesmo dia. Essa é a nossa luta”, finaliza.