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No lar temporário, um amor para a vida toda

Família Acolhedora garante convivência, aconchego e respeito

De portas, janelas, almas e corações abertos para o “olá” e o “até à vista”, com a possibilidade de acrescentar à bagagem daquele que retorna ao lar de origem, ou parte para uma nova vida, as lições que só a dedicação desprendida e o amor sem amarras são capazes de ensinar. Ser porto seguro em meio a um período tempestuoso enfrentado por muitas crianças e adolescentes tem sido o papel vital das famílias acolhedoras.

Um serviço ainda em crescimento no país, desperta dúvidas e receios fazendo com que, em determinadas situações, as pessoas tenham resistência em aderir. O principal deles é: e o momento da separação?

Para Vivian Beatriz Krueger Krahn, de 52 anos, a incerteza acerca da própria reação quando chegasse o momento do retorno da criança ou adolescente à família de origem (ou o encaminhamento à adoção) foi o que lhe deixou em dúvida antes dela e do marido realizarem a formação para se tornarem família acolhedora. No entanto, o exemplo vivenciado por uma pessoa de seu convívio e a conversa com o psicólogo e coordenador do serviço em Pomerode, Tiago Cardozo, foram os pontos chave para que eles aderissem ao serviço.

Tão logo completaram a formação, a oportunidade de acolher um bebê surgiu. “A todo o momento havia algo dentro de mim que dizia: vai, é a tua missão, Deus está batendo na sua porta e você não pode dizer que não”, revela Vivian.

O bebê acolhido pela família tem atualmente pouco mais de um ano de vida. Ele já estava em processo de retorno à família de origem, então passava a semana na casa de Vivian e o fim de semana com a mãe biológica. Logo nos primeiros momentos, o afeto pelo bebê nasceu no coração da família. “Deus me deu um presente que eu jamais poderia imaginar. Aquela convivência foi maravilhosa.”

Foi na sala de estar da casa dela que o pequeno deu os primeiros passinhos, ocasião devidamente registrada para ser compartilhada com a mãe da criança. Esse e outros momentos, como as brincadeiras diárias, os soninhos da tarde, os sorrisos e abraços, ficarão para sempre na memória da família. Foram meses de entrega, alegria e a certeza de que a dedicação em oferecer segurança e aconchego nessa fase da vida trouxeram benefícios que permanecerão por toda a vida.

O amor como ferramenta: a primeira experiência de Vivian Beatriz Krueger Krahn como Família Acolhedora terminou a poucas semanas. Foto: Gabriel S./Testo Notícias

O acolhimento chegou ao fim há poucas semanas. A saudade existe, mas a certeza de que o melhor para a criança era o retorno à família de origem se sobrepõem e aquece o coração de Vivian. “Aprendi que quanto mais eu puder ajudar emocionalmente alguém é muito melhor do que dar coisas materiais. Coisas podem quebrar ou serem roubadas, mas o amor, o cuidado e as boas lembranças permanecem. Daqui, não levamos nada, como dizem: caixão não tem gaveta e a última camisa não tem bolso”, reflete.

Ela não sabe se a criança terá memórias do tempo que passou com a família, mas espera que tenha conseguido passar para ela a sensação do amor vivenciado em família, da segurança, do cuidado e do bem querer. Questionada se pretende repetir a experiência, afirma categoricamente que sim. “Eu só pedi um tempinho ao Tiago, mas pretendemos acolher novamente. Nós sabemos que a experiência vivida agora foi única, assim como será algo único se tivermos a oportunidade de voltar a acolher.”

Para outras famílias interessadas em acolher, ela orienta: “Não romantizem, não é um conto de fadas. Se forem crianças pequenas, haverá noites em claro, febre, dor de barriga, fraldas para trocar, mas tudo isso faz parte. Em alguns momentos você estará cansado, mas acredito que o melhor que podemos fazer pelo outro é doarmos um pouco de nós mesmos.”

Três acolhimentos, desafios vencidos e muitas lições aprendidas

Em dois anos, a professora de música e de reforço escolar, Crista Ott, de 38 anos, e sua família já vivenciaram três acolhimentos. Na primeira oportunidade, foram quatro irmãs com idades entre um e nove anos. O segundo acolhimento foi de uma menina, de dois anos de idade. Já o terceiro acolhimento é de uma adolescente de 16 anos, que foge ao perfil de crianças menores escolhido pela família no primeiro momento.

Cada uma dessas experiências trouxe à Crista vivências únicas e transformadoras. “Tudo começa antes de sabermos do serviço da Família Acolhedora. Não sabíamos da existência dele e tínhamos o desejo de realizar algum trabalho com crianças que estavam em abrigo, mas a instituição mais próxima fica em Rio dos Cedros. Faço parte da Meuc [Missão Evangélica União Cristã] e o Tiago [Cardozo, coordenador do projeto] se apresentou para nós e explicou sobre o serviço e tudo caiu como uma luva”, compartilha.

Após conversar com o esposo, ambos se inscreveram para participar da formação. O casal tem um filho que se adaptou muito bem aos acolhimentos. “Eu vejo muito a mão de Deus nesse caso, porque, por mais que tenhamos explicado, a forma como ele lida com tudo é algo que vai além. Ele gosta muito, é proativo, interage, brinca e quando dizíamos [no caso do primeiro acolhimento] ‘filho, vai chegar o momento em que elas irão embora’ ele apenas nos respondia: ‘eu sei’. E quando eu perguntava se ele ficaria triste, respondia que não. Parecia que dentro dele já havia o entendimento de tudo que aconteceria”, contextualiza.

Lições: em seu terceiro acolhimento, Crista Ott avalia os ensinamentos aprendidos e transmitidos. Foto: Gabriel S./Testo Notícias

Vivendo paralelamente o segundo e o terceiro acolhimentos, Crista revela que os desafios de cada situação são distintos e trazem muitos ensinamentos. “Tem sido um aprendizado para me conhecer, saber dos meus limites e habilidades. Eu tenho me percebido muito capaz de ensinar e educar no sentido de ser um extra do que a escola faz, para aqueles que já vão para a escola. Tenho conseguido dar muito do meu conhecimento, mas eu tenho aprendido muito a perceber os meus limites: onde eu preciso ter mais paciência e até onde a criança precisa de tolerância”, revela.

Sobre a experiência da desvinculação, ela pondera ter em mente desde o início que o acolhimento é temporário, o que facilita muito o processo. Além disso, a rotina que a família levava antes de acolher pode ser restabelecida e traz consigo muitas coisas boas. Crista ressalta que essas impressões se baseiam na experiência de desacolhimento vivida por ela até aqui, das quatro irmãs. “Quando chega esse momento, você sabe que estão indo para um lugar melhor. As meninas estavam loucas para voltar para casa, sentiam saudades. Estavam bem aqui, mas ficaram felizes quando o momento chegou. Isso deixa a gente feliz, porque você quer que elas estejam bem”, reflete. 

Na primeira experiência vivida por eles, outro fator chama atenção: o vínculo com as irmãs permanece. “Nós as levávamos para a igreja nos fins de semana e elas continuam, frequentam a Meuc. A família mora na comunidade e mantemos contato. Inclusive, a adolescente que está comigo atualmente ficou super amiga da menina mais velha da primeira família que acolhemos. Isso é uma coisa legal. Nós percebemos da família de origem das meninas uma gratidão muito grande. Percebemos também, cada vez mais, uma proximidade por parte da mãe das meninas, de forma super natural e voluntária. Claro, é algo que não podemos ter como padrão, depende da vontade de cada família (adotiva ou de origem)”, finaliza. 

Atuação com gostinho de acolhimento

Preconizado no Estatuto da Criança e do Adolescente, o serviço da Família Acolhedora em Pomerode foi viabilizado por meio de uma lei municipal no ano de 2019. De acordo a promotora de Justiça, Dra. Rejane Gularte Queiroz Beilner, ele foi instituído em Pomerode para atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e tem como finalidade garantir a elas a preservação dos direitos, de maneira a ensejar um futuro retorno familiar ou uma preparação para a adoção. “No âmbito da família acolhedora, essas crianças e adolescentes têm os seus direitos respeitados, com regras e limites, como em qualquer lar. Elas têm ainda muito carinho e acompanhamento, que todos têm direito e que deveriam receber nas famílias de origem”, explica.

Atuação: de acordo com a promotora Dra. Rejane Gularte Queiroz Beilner, o serviço foi instituído em Pomerode para atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. Foto: Gabriel S./Testo Notícias

Muitas das situações de vulnerabilidade, apesar de intervenções feitas pelo poder judiciário, fazem com que o afastamento da família de origem seja necessário, encaminhando as crianças ou adolescentes aos serviços de acolhimento, que podem ser familiar ou institucional. Feito pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação de Pomerode, um levantamento de 2019 apontou que muitas das crianças e adolescentes que estavam em acolhimento institucional (abrigo), poderiam fazer parte do serviço de acolhimento familiar, caso ele fosse aplicado no município.

O quê, para a secretária da pasta, Renata Klee, se apresentava como uma oportunidade para trabalhar a importância da base familiar de uma forma integral. “Naquele ano, paramos para olhar isso com muito carinho e então resolvemos que criaríamos o serviço de família acolhedora para dar essa oportunidade às crianças e adolescentes de terem o convívio familiar.”

Outro fator crucial para o desenvolvimento do serviço na cidade foi a distância em que os acolhimentos institucionais ocorriam, ocasionando rupturas nos vínculos sociais e familiares daquelas crianças. “Tínhamos crianças acolhidas e que estavam espalhadas pelo estado, em instituições localizadas em Florianópolis, Braço do Trombudo e Biguaçu, por exemplo, pela dificuldade que tínhamos de encontrar vagas na região. Isso implicava em uma série de fatores para a criança, como o afastamento do convívio escolar e da família e a diferença entre as culturas”, complementa o psicólogo e coordenador do Serviço Família Acolhedora, Tiago Cardozo.

Comprometimento: psicólogo e coordenador, Tiago Cardozo, fala sobre a evolução do serviço em Pomerode. Foto: Gabriel S./Testo Notícias

Resultados surpreendentes

O primeiro acolhimento familiar aconteceu em abril de 2020 em uma data repleta de significados, a Páscoa. “O papel da família acolhedora é o papel da nossa família. É o papel de cuidar, de assistir, de dar atenção para aquela criança ou adolescente”, esclarece Renata.  

Resultados que aquecem o coração de todos os envolvidos e comprovam que o serviço pode mudar vidas. “Nós sabemos que é em um ambiente em que a criança se sente acolhida, protegida e querida que ela tende a estar mais fortalecida em todos os aspectos de sua vida. Isso estimula o desenvolvimento saudável que nós esperamos de todas as crianças e adolescentes”, assegura dra. Rejane.

Para ser uma família acolhedora

A disponibilidade de tempo, o interesse em ofertar proteção e afeto às crianças e adolescentes, assim como muito amor e carinho, são alguns dos pré-requisitos dos indivíduos ou famílias que quiserem fazer o cadastro no serviço. “Existem algumas etapas, a primeira é a inscrição da família. Em seguida, há uma capacitação em que é explicado o que é o serviço, o que é feito e qual é o papel da família acolhedora, quando se aborda sobre os diferentes tipos de família, o que é vulnerabilidade, proteção social, entre outros tópicos. Também é trabalhada a questão dos traumas e, principalmente, do vínculo e da desvinculação, que são os fatores e o papel mais importante da família acolhedora”, esclarece o psicólogo.

Continuidade: secretária Renata Klee reforça a importância de ampliar o número de famílias habilitadas. Foto: Gabriel S./Testo Notícias

Os interessados geralmente são captados por meio de conversas com a rede de serviço, com as igrejas, entidades e vários órgãos do município. “Entendemos que muitas pessoas têm vontade de ajudar, mas possuem algumas ressalvas”, declara Renata.

Para Tiago, um ponto fundamental para que a captação seja constante é exatamente essa necessidade de lares dispostos a acolher de forma segura e amorosa. Vale ressaltar ainda que uma família acolhedora não pode manifestar o interesse pela adoção, que possui um processo próprio. “É esperado que exista uma rotatividade de famílias acolhedoras porque a organização das famílias muda, a condição das pessoas muda com o tempo.”

Dados fornecidos pela Secretaria de Desenvolvimento Social e Habitação de Pomerode. Arte: Gabriel S./Testo Notícias

Outro ponto destacado pela promotora de Justiça é o suporte financeiro para as famílias que acolhem. A lei municipal estabeleceu a possibilidade de um benefício financeiro temporário pelas famílias que acolhem crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade. “As famílias que têm predisposição de amor e de doação emocional e de tempo podem ser habilitar sem o receio de que a presença de outra pessoa em casa vá desequilibrar as finanças. A percepção desse benefício tem a finalidade de apoiar a família que recebe de maneira que ela tenha condições de garantir que os direitos e necessidades do acolhido sejam assegurados, sem que isso custe para a família.”

A proximidade e a desvinculação

O ato de acolher é de muita coragem e precisa de doação, mas a missão de desacolher com amor é ainda maior. “Essa é a diferença que faz brilhar o olho durante a nossa intervenção e o trabalho da assistência social, a capacidade de doação e amor envolvidos em casa acolhimento”, reitera Tiago. “Se tornar uma família acolhedora é se doar”, complementa Renata.

Se na chegada da criança ocorre o vínculo e a necessidade urgente da mudança da família e do acolhido, é na desvinculação gradual que a atenção precisa ser maior. “Se há uma dificuldade de separar é porque aquele encontro foi bom. Por isso, fazemos esse processo de uma forma gradual, geralmente começa com a criança indo visitar a família de origem, passa um fim de semana, às vezes passa um período um pouco maior para a família acolhedora e a criança já irem se acostumando. O que mais vemos no fim do acolhimento é que a criança não tem o sentimento de que perdeu a família acolhedora, mas que ganhou mais uma família de apoio”, reforça Tiago.

Resultados positivos desde a implantação do serviço em Pomerode, segundo os registros e a avaliação que o Ministério Público faz das situações atendidas.  “Nós estamos sempre recebendo pessoas interessadas, capacitando-as, acolhendo-as e preparando-as para essa missão. Essa é uma forma de exercício da cidadania, do exercício da generosidade, do exercício do amor em prol de crianças e adolescentes que na maior parte das vezes são vítimas do outro e não de si mesmas”, finaliza Dra. Rejane.

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