Fugidos da água, refugiados no telhado, sem água limpa para beber, sem comida, clamando por socorro. Crianças, bebês, idosos, homens, mulheres, casas de famílias, prédios, estádios de futebol… A tragédia não poupou ninguém. Tento fugir desse assunto, pensar em temas mais amenos, mas meu coração não deixa esquecer, talvez porque, justamente, não devamos esquecer.
Desde lá, algo mudou dentro de mim. Meu coração já havia quebrado outras vezes por pessoas as quais não conhecia o rosto, como nas tragédias de Brumadinho e Mariana, no inacreditável incêndio da Boate Kiss, nas consecutivas enchentes do Vale do Itajaí. No entanto, todas essas memórias acabaram arrefecendo na mente e aos poucos pareceram filmes assistidos há um bom tempo. Dessa vez, não quero esquecer.
Muitos dos nossos irmãos gaúchos ainda estão em abrigos, já não pertencem a lugar algum, perderam tudo de material que possuíam. Outros, perderam aquilo que ninguém pode recuperar: a vida de um ente querido.
E será que está claro para todos que a tragédia não acabou? Não amigos, há muito por vir. As doenças trazidas pela água suja ainda aparecerão, as dores da perda serão sentidas e o bem-estar emocional estará comprometido. Crianças perderam os pais, pais perderam os filhos, famílias destroçadas, cidades varridas pela água e pela lama. De uma vida de luta, nada restou. Ou restou? É sabido que as Fênix renascem das cinzas, mas será que também renascem da lama?
Enquanto a resposta a essa pergunta não me ficar clara, eu não quero esquecer. Quero continuar sentindo a perplexidade, quero continuar me perguntando: e se esse bebê fosse o meu filho? Esquecer até pode ser um mecanismo de sobrevivência, mas colocar o quê no lugar? Talvez a paz trazida pelo egoísmo… talvez a proteção da ignorância proporcionada pela autoproteção… talvez a armadura proporcionada pelo cotidiano. Não, nenhuma das opções cabe. Eu quero lembrar, não como um filme, mas como a vida real.
Quero lembrar e quero ajudar da maneira que minhas condições permitirem. E mais, quero aprender e ensinar. Ensinar ao meu filho sobre a natureza, sua beleza e sua fúria. Quero que ele saiba sobre a dor do outro e sobre a solidariedade que salva. Eu quero lembrar para que ele possa saber… e possa agir, e possa mudar. Quero lembrar para aqueles depois de nós. E peço, mesmo que seja apenas aos poucos que minhas palavras tocarem, lembrem-se também.